sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Porque chorei hoje

16/11/2012

Como algumas pessoas já devem saber, entre outras coisas que faço, trabalho com pesquisas para uma empresa Federal, no caso, o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Esta instituição não faz somente o censo como muitos podem pensar mas faz diversas outras pesquisas ao longo do ano. Uma delas é a tal PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. São selecionados em media 16 residencias em determinadas seções dentro de bairros e vilas e em seguida, vamos lá entrevistar os moradores destas casas selecionados ao acaso via computador. São dezenas de perguntas para todos os integrantes dessas famílias. Perguntas que envolvem Educação, Trabalho, Poder Aquisitivo, Fertilidade etc.


Alguns colegas apenas fazem as perguntas sem dar muita atenção à pessoa entrevistada (o que é recomendado em treinamento). Nada de papo, nada de entrar nas casas, nada de se envolver com as pessoas. Muitos moradores nem querem falar; entretanto, outras precisam ter com quem falar. Me considero diferente porque muitas vezes me envolvo com os problemas das pessoas o que é muito ruim para mim.

No final de 2011 fui até uma vila muito pobre que fica num município também muito pobre aqui na Região Metropolitana de Porto Alegre. Não vou dar detalhes em função do Sigilo de nossas pesquisas.


Após estacionar o carro embaixo de um arvore devido ao forte calor que fazia, bati palmas e aguardei  alguém aparecer. Era uma rua de chão, muita poeira. Não havia calçadas e nem mesmo meio-fio. Então surge uma senhora de cor clara, aparentando uns 25 anos. A primeira vista parece bem, pois tem formas arredondadas, braços relativamente grossos, cabelos longos e dentes muito brancos e bonitos. Ela sorri e começamos a entrevista. Bom deixar claro que essa beleza que falo é relativa à sua saúde.


Pergunto de seu trabalho e ela me informa que não esta trabalhando, esta afastada por doença. Pergunto o que ela tem e a resposta é Câncer. Fico profundamente chocado com a resposta mas tento não deixar ela notar. Ela me diz que esta fazendo tratamento e que Deus vai ajudá-la  pois tem muita fé. Pergunto então se é casada e se o marido trabalha. A resposta é que ele esta desempregado - "Até tinha um bom emprego mas é muito genioso" - diz ela. Ele estava a procura de trabalho.


Fico sabendo que o menino de pouco mais de um ano e que brinca descalço é seu filho. O menino, de cor parda, mostra também boa saúde e realmente tem ótima saúde. Puxou o pai diz ela sorrindo.


Noto também que ela arruma suas unhas e tenta levar uma vida como se tudo estivesse bem, porque talvez ela acredita realmente que Deus vá salva-la. Mas eu saio de lá preocupado com esse mulher que não tenho nada a ver. Sei que Ele, se existe, não vai fazer nada por ela. Ela vai nas seções de quimioterapia quando pode e compra medicamentos quando consegue.


O tempo passa. Estamos agora em 2012 e volto à esta mesma vila, que agora largaram uma brita preta sobre a estrada cheia de buracos. Por acaso resolvo estacionar o carro no mesmo local, mas cortaram parte das arvores aumentando ainda mais a sensação de calor.


Vejo um menino e o reconheço. Ele sorri na cerca de madeira. Desço do carro e ofereço um mapa do Brasil para ele que sai correndo mostrar para alguém. Sabia que ali morava aquela mulher que falei no ano passado. Como estaria? Estaria melhor? Teria morrido?


Surge então uma senhora e me pergunta se o mapa é para eles. Digo que sim e pergunto pela moradora da casa. Explico que entrevistei ela um ano antes. A senhora de cabelos brancos e mãe de criação me conta que esta cuidando dela. Largou tudo, inclusive seu emprego para cuidar dessa filha e do menino. Ela esta cada dia pior, acamada. O Câncer agora esta no figado e tem Metástases espalhadas. Sofre de dor as vezes.


Não escondo minha minha tristeza e pergunto pelo marido dela, pois sabia que no ano anterior ela morava com alguém naquela pequena e humilde casa. A senhora me conta que ele a abandonou, deixando-a doente com o menino, seu filho. Isso me deixa mais chocado. Mistura de raiva e pena dessa mulher que possivelmente se entregou com amor sim para esta criatura nojenta, que de nem de animal podemos chamar.


A senhora também diz que agora esta tudo nas mãos de Deus e neste momento vejo como é importante, em parte, estas pessoas terem pelo menos algo em que acreditar, pois nossa ciência ainda não pode cura-la. Volto para o carro e vejo a senhora e o menino completamente alheio a tudo irem para dentro da casa. E choro no carro por algo que eu não tenho nada a ver.


Agora,  aquela jovem mulher que um ano antes me recebeu sorrindo, mesmo com essa doença, padece no seu leito. Talvez sem esperanças em salvação, preocupando-se com o futuro de seu filho nas mãos de sua mãe que também não vai muito longe. Ela não sonhava em viajar pelo mundo ou ter um carro do ano. Seus sonhos eram simples, era ter uma família, um homem para ama-la e protege-la e que estivesse ao seu lado nas horas difíceis. Mas isso não aconteceu, não acontecerá. Nem ao menos um pouco de atenção, uma visita, um pouco de amor. Enquanto ela estava bem  este pilantra apenas a usou e agora, a joga para um canto para morrer longe de seus olhos, sem ouvir seu choro, não de dor, mas pelo amor que talvez não tenha existido.


(...)

(Segunda-feira, dia 19/12, devo voltar a esse local e talvez a visite)
Fui visita-la, mas ela já tinha morrido.